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segunda-feira, 7 de junho de 2010

A SAÚDE MENTAL NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Revista Jurídica Consulex nº 320
Matéria de Capa
DivulgaçãoRenata Lira e Rafael Dias
RENATA LIRA é Advogada da Organização Não Governamental de Direitos Humanos Justiça Global.

RAFAEL DIAS é Pesquisador da Justiça Global e doutorando em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Nos últimos 20 anos, foram visíveis as transformações na assistência de saúde mental e no cuidado dispensado às pessoas com transtorno mental, operadas pela Reforma Psiquiá­trica, a qual entendemos como um processo social complexo e inconcluso que envolve diversos atores da sociedade civil e agentes políticos dos três níveis de governo: municipal, estadual e federal.
Essas mudanças resultaram da luta dos trabalhadores da saúde, usuários dos serviços e seus familiares pelos direitos e garantias consagrados na Constituição de 1988 e, posteriormente, na legislação de regência do Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1990.
Um dos marcos do Movimento pela Reforma Psiquiátrica foi o II Congresso dos Trabalhadores de Saúde Mental (“Congresso de Bauru”), realizado em 1987, cujo lema “por uma sociedade sem manicômios” se constituiu uma crítica à assistência psiquiátrica de tipo manicomial. À época, o modelo adotado eram grandes hospitais psiquiátricos de característica asilar, que promoviam diversas formas de violações aos direitos humanos. Para Franco Basaglia1, idealizador da psiquiatria democrática italiana, a instituição manicomial está historicamente ligada à violência.
Para reverter tal situação, algumas medidas foram adotadas, como a apresentação do PL nº 3.657/89 pelo Deputado Federal Paulo Delgado2, visando romper com o modelo de “modernização” técnico-assistencial da psiquiatria, avançando para uma crítica mais global e complexa.
No plano internacional, o compromisso firmado pelo Brasil ao assinar a Declaração de Caracas (Venezuela), em 1990, impulsionou as reformas na área da saúde mental nas Américas.
No início da década de 90 foram abertos alguns Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em São Paulo, e Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), em Santos, com a finalidade de promover mudanças no modelo centrado no hospital psiquiátrico, para a atenção de base territorial e comunitária. No entanto, o crescimento dos serviços substitutivos aconteceu de maneira descontínua e sem financiamento específico do Ministério da Saúde, concentrando-se os recursos públicos nos hospitais psiquiátricos.3
Nessa trajetória, a aprovação da Lei nº 10.216/01 significou um novo impulso para a efetivação das políticas de atenção psicossocial de caráter aberto e com base comunitária.
A LEI DA REFORMA PSIQUIÁTRICA
Com a sanção da Lei nº 10.216/01 e a edição de portarias pelo Ministério da Saúde, a Reforma Psiquiátrica ganhou finalmente um marco legal e o caráter de política pública que, embora priorize a rede substitutiva de base comunitária na atenção à saúde mental, carece de mecanismos que assegurem a gradual substituição dos manicômios e a ampliação da rede extra-hospitalar.
É preciso frisar que a substituição gradual dos leitos em hospital psiquiátrico pela rede de cuidados intensivos não significa desassistência, e sim mudança de paradigma na atenção devida às pessoas com transtornos mentais, integrando-as em diferentes contextos sociais.
Atualmente, a rede extra-hospitalar ganha força. Dados recentes do Ministério da Saúde apontam para 1.502 CAPS cadastrados em todo o Brasil4 e o desenvolvimento dos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) com o Programa “De Volta para Casa”, direcionado às pessoas com longa permanência em hospital psiquiátrico, além de projetos para geração de renda, entre outros. Essas iniciativas conferem cidadania civil e política àqueles que necessitam de cuidados na rede de saúde mental.
Todavia, para a consolidação do projeto reformista, há que se colocar os CAPS III funcionando 24h diariamente, para atendimento dos casos de emergência, criar leitos psiquiátricos em hospitais gerais e conceder financiamento público para a ampliação dos dispositivos abertos de saúde mental, assim como para capacitação e remuneração digna dos profissionais.
Alguns anos antes da aprovação da Lei da Reforma Psiquiátrica, a morte violenta de Damião Ximenes dentro de uma instituição de saúde mental ensejou a condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O CASO XIMENES
Em 1º de outubro de 1999, Albertina Ximenes internou o filho, Damião Ximenes Lopes, na Casa de Repouso Guararapes, em Sobral-CE. Três dias mais tarde (04.10.99), retornou à clínica para visitá-lo, encontrando-o em estado lamentável, sangrando, com diversas escoriações e hematomas, sem roupa e com as mãos amarradas. O médico responsável, Francisco Ivo de Vasconcelos, então diretor da instituição e legista do Instituto Médico Legal, quando solicitado pela mãe do paciente, apenas prescreveu medicamentos, sem sequer examiná-lo. Horas depois Albertina foi informada da morte de Damião.
Irene Ximenes, irmã do paciente, registrou ocorrência na Delegacia de Polícia local, buscou por outras pessoas torturadas na mesma clínica e indicou a ausência de depoimentos cruciais para as investigações. Decepcionada com a inércia e ineficiência das autoridades brasileiras, em novembro de 1999, Irene encaminhou uma denuncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Em parceria com a organização não governamental Justiça Global e a cooperação de movimentos antimanicomiais, o Estado brasileiro foi denunciado, pela primeira vez, em uma instância internacional pela morte de paciente em clínica psiquiátrica conveniada com o SUS.
Em 4 de julho de 20065, numa decisão histórica, a Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu a primeira sentença condenatória envolvendo pacientes psiquiátricos no Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos, com manifestação acerca do mérito, reparações e custas. Assentou a Corte que o Brasil é responsável pela morte violenta de Damião Ximenes Lopes e também pelas violações a que estão submetidos seus familiares, que até a presente data aguardam por justiça.
Como forma de reparação, a Corte determinou ao Estado brasileiro o pagamento de indenização aos familiares de Damião Ximenes. E mais: a conclusão, em prazo razoável, do processo destinado a investigar e sancionar os responsáveis pelos fatos ocorridos, com os
devidos efeitos; a publicação, no prazo de seis meses, da sentença no Diário Oficial ou jornal de circulação nacional, e, ainda, o prosseguimento do programa estatal de formação e capacitação dos profissionais que atuam na área da saúde mental, com observância dos princípios que devem reger o trato das pessoas portadoras de transtorno mental, de conformidade com os padrões internacionais.
Em que pese o Estado brasileiro ter cumprido os pontos referentes à publicação de parte da sentença e ao pagamento de indenização, tem-se como parcial o cumprimento da sentença exarada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pois, no entender de familiares e dos peticionários, a determinação de conclusão do processo em prazo razoável e o desenvolvimento de políticas públicas na área da saúde mental não foi respeitada.
Evidentemente, não se pode negar os avanços na área da saúde mental, contudo, há que se ressaltar a importância de celeridade na implementação das políticas públicas. É preocupante a convivência dos serviços substitutivos com os hospitais psiquiátricos de característica asilar, que, sem fiscalização, continuam a promover violações sistemáticas dos direitos humanos, numa repetição trágica dos fatos ocorridos com Damião Ximenes.
É o que ocorreu com Ana Carolina Cordovil Heiderich Silva, uma jovem de 18 anos que foi internada na Clínica de Repouso Santa Izabel, localizada em Cachoeiro de Itapemirim-ES, no dia 26 de novembro de 2006. Portadora de alergias, principalmente ao medicamento Haloperidol, conforme comunicou sua mãe ao médico assistente, a paciente recebeu tal medicação durante todo o período da internação, ou seja, até 04.12.06, o que sugere mais um caso de negligência médica e maus-tratos.
Ainda a propósito do caso Ximenes, é possível afirmar o descumprimento da determinação de que as ações em curso no Brasil fossem finalizadas em prazo razoável. Isto porque Damião foi morto em 4 de outubro de 1999, na Clínica de Repouso Guararapes; 1º de outubro de 2004, a Comissão informou ao Estado brasileiro que enviou o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos; 30 de novembro de 2005, realizada audiência na sede da Corte, em San José, Costa Rica, oportunidade em que o Brasil reconheceu sua responsabilidade no caso; 17 de agosto de 2006, o Estado brasileiro tomou conhecimento da sentença; 27 de junho de 2008, data da prolação da sentença na ação cível; 29 de junho de 2009, data em que prolatada a sentença no processo criminal; 6 de maio de 2010, quase 11 (onze) anos depois da morte de Damião Ximenes ainda não há uma resposta final para a sua família.
A condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos, pelas violações cometidas contra Damião Ximenes e sua família, é um marco na luta pela reforma psiquiátrica no Brasil. Agora, o processo de reforma será novamente avaliado na IV Conferência Nacional de Saúde Mental, marcada para os próximos meses, a qual se configura um passo importante para garantir a ampliação da rede de cuidados e os direitos das pessoas com transtorno mental.
NOTAS
1 Basaglia esteve à frente da reforma da assistência psiquiátrica na cidade de Trieste (Itália), que inspirou o processo reformista brasileiro.

2 Esse projeto de lei seria aprovado 12 anos depois, com modificações.

3 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde.DAPE. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. OPAS. Brasília, novembro de 2005.

4 Ver em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/caps_dados_atualizados5abril.pdf. Acesso: 06.05.10.

5 Corte IDH. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 4 de julho de 2006. Serie C nº 149. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf.

Um comentário:

  1. Nercinda Heiderich13 de dezembro de 2013 22:06

    E violações dos DH dentro destas Clínica continuam. Em agosto de 2012 foi internada na Clinica de Repouso Santa Isabel LTDA, Wildiana Câmara Louzada portadora de saúde mental com um câncer de Mama e só voltou após 7 meses de internação com a doença em estado avançado. Se estas Clínicas não possuem condições de tratamento nem no que se propõe, por que aceitam pacientes com patologias clínicas, com câncer, diabetes, depressão e etc...? Na minha opinião, tanto os médicos que determinaram sua internação, quanto os da clínica têm responsabilidades nestes casos. Acho que está faltando o começo, porquê os resultados destas internações já temos de sobra...Saudações manicomiais!

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