quarta-feira, dezembro 28

Doença e Sofrimento

Doença e Sofrimento
Dirce de Assis Rudge

Médica especializada em dependência química, terapeuta familiar, formadora de terapeutas comunitários, presidente da Associação Espaço Comunitário Comenius.
www.espacocomenius.com.br
dirassis@terra.com.br

Infelizmente tenho que concordar com alguns pontos do artigo do Paulo Delgado. Quando me formei, há 36 anos atrás, os médicos ainda conversavam com os pacientes, não faltavam a plantão, examinavam o paciente. As notícias que tenho agora são bem diferentes, salvo exceções honrosas, os colegas não mais conversam, não examinam e faltam a plantões. Isto é deplorável. É muito mais fácil receitar um tranqüilizante e se “livrar” do paciente incômodo, é muito mais fácil receitar um analgésico ou pedir tomografia para qualquer dor de cabeça que apareça pela frente. Parece-me que muitos colegas nem
chegaram a experimentar o prazer que existe no exercício pleno da medicina:
conversar, examinar, fazer um diagnóstico, orientar, medicar e ver o paciente levantar-se.

Não culpo os colegas porque todos nós chegamos à faculdade, adolescentes e muitas vezes sem ter a mínima idéia do que escolhemos. Meus colegas são vítimas de um sistema excludente que não oferece nenhuma perspectiva. O sonho, melhor dizendo, a utopia do SUS ficou muito evidente com a recente doença de um famoso ex operário e ex presidente. Pacientes operários esperam na fila para uma consulta com especialista e quando o médico faz o diagnóstico, muito tempo depois, quase sempre não há mais o que fazer e ele acaba os seus dias em intermináveis viagens dentro de um sistema
extremamente cruel.

Por outro lado, a própria sociedade copia o modelo norte americano de medicalização e como não se sabe pessoa com direitos, não reclama, não reage frente ao brutal descaso que sofre. Os meus colegas são vítimas desse sistema e é muito difícil escapar. Eu tive a felicidade de começar a trabalhar aos 13 anos com carteira assinada e pude aposentar-me num dos vínculos há muito tempo atrás. Sem filhos, pude dedicar-me um pouco mais aos pacientes. A maioria não tem essa chance. São jogados aos “leões”
absolutamente inocentes e acabam se tornando cúmplices do que está aí.

Com relação ao crack entendo que o nosso sistema social está tão fragilizado
que os pais, frente as dificuldades do sistema que não tem onde encaixar o
seu sofrimento, frente ao filho que lhe testa os limites o tempo todo, acaba
abandonando o infeliz à própria sorte e não tem como perceber que a atitude
do filho pode ser um lancinante pedido de socorro. Socorro para o abandono,
a discriminação e a selvageria reinante. Tenho tido sucesso com casos de
dependência de crack quando os pais se envolvem no tratamento. A questão é
muito complexa. Não é a mãe que abandona, os usuários não são pobres e
excluídos, eles se tornam pobres e excluídos depois de muito comprometidos
pelas drogas. Ele pode ser um estudante universitário, um pai de família, um
executivo e acabar na cracolândia. Este é um ponto fundamental para
entendermos um pouco mais da questão. É lógico que existem crianças
abandonadas que acabam chegando lá e contra isso temos que unir forças para
prevenir, mas há muito mais neste balaio.

Fiquei chocada neste 23 de dezembro frente a um grupo de 18 crianças da
favela do Sapé, entre 8 e 11 anos, que não souberam responder de quem era o
aniversário que estávamos celebrando. Uma pequenina de 4 anos disse que era
papai Noel, os outros se calaram. Qualquer pessoa bem informada sabe que os
fatores de prevenção do abuso de substâncias para crianças e adolescentes
são vários, mas alguns são relacionados a estrutura familiar,
espiritualidade, modelos, valores, redes de apoio.

Temos que trabalhar rápido porque um modo de lidar com isso nasceu em 1983
lá no Ceará: Terapia Comunitária Integrativa pelas mãos de Adalberto de
Paula Barreto, um psiquiatra raro. Atravessou fronteiras e está estabelecida
além de todos os estados brasileiros, na Argentina, Chile, Uruguai, França,
Itália, Suíça e África. Não é necessário ser profissional da saúde, nem da
área psi para se tornar terapeuta comunitário é preciso ter disposição,
vocação cuidadora, saber ler e escrever bem. A proposta da TCI não é cura,
nem tratar de doenças, mas sim o alívio do sofrimento, para o qual é muito
eficiente.

Penso que um dos pontos que podemos atuar, e aí as redes sociais podem se
tornar um veículo fundamental contra os abusos que sofremos no dia a dia com
a mídia, políticos e lobbies trabalhando contra o tempo todo. Explico.
Bebida alcoólica não deve ter publicidade, as crianças devem ser protegidas
dessa afronta e jamais, num país sério, bebida alcoólica patrocinaria
atividades esportivas, que tocam especialmente nos adolescentes. Bebida
alcoólica em estádios? Absurdo que vai contra o bom senso de qualquer pessoa
com QI acima de 50. Alguma coisa começou a ser feita, mas falta muito, muito
mais. Podemos lutar por isto.


BOAS FESTAS E QUE EM 2012 POSSAMOS TRABALHAR DE MANEIRA MAIS ASSERTIVA,
ENFRENTANDO OS NOSSOS VERDADEIROS INIMIGOS: POLÍTICOS APOLÍTICOS E A
CORRUPÇÃO.

UM ABRAÇO A TODOS.
Leia abaixo o artigo do Paulo Delgado

Como Fazer o Sofrimento Gerar Mais Afeição?

Paulo Delgado(*)

O sofrimento virou doença. Qualquer mal-estar diante do mundo, um distúrbio.
A ambição grandiosa da psiquiatria está cada vez mais parecida com o sem
limite do mercado financeiro. Querem que todos vivam suas leis de ferro,
amedrontados e submissos. Nada melhor para a criação de crises do que um
poder sem sociedade, com regras próprias, exercido sobre todas as pessoas,
sem que elas tenham direito de reagir ou ficarem indiferentes. Basta dar o
nome de diagnóstico para relacionar sintomas e definir como transtorno
qualquer manifestação da personalidade.

Quando a prática da medicina, subjugada à indústria de medicamentos, se
oferece como cárcere, ficamos diante de uma verdadeira bomba embrulhada como
se fosse terapia. Pior quando uma especialidade médica transforma em missão
sanitária esconder hábitos e tarefas de uma sociedade indiferente a vida dos
outros e que só vê as pessoas de forma binária: com sucesso, ou fracassadas.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) anda preocupada com a definição de
doença mental que a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Doença Mental — universalmente conhecido como DSM-V — anda preparando. A ser
lançada em 2013, mas já objeto de tensa polêmica no meio psiquiátrico,
especialmente norte-americano, a nova edição da DSM, transforma o cérebro
num disco rígido. Um computador sem alma, intoxicado, num mundo cada vez
mais doente e que somente poderá ser salvo por remédios. A OMS alerta que
não aceita a desenvoltura da classificação, porque não é doença o que não
pode ser caracterizado patologicamente, tem etiologia desconhecida, não
possui padrão uniforme, não pode ser confirmado.

Quem não viveu alguma vez na vida, alguma destas graves “doenças”
psiquiátricas: abuso ou abstinência de substâncias, ansiedade, autismo,
déficit de atenção, transtorno bipolar, confusão, desatenção, tendência à
psicose, transtorno de personalidade, comportamento antissocial, apego
reativo, amnésia, esquizofrenia, distúrbios diversos, etc. São tantos os
nomes das “doenças do nervo” que agora viraram sinônimos de remédios e
comportamentos, que começa a ficar preocupante o convívio humano. A menos
que a sociedade perceba a gravidade dessa verdadeira epidemia que é querer
tratar pela psiquiatria as dificuldades e problemas que fazem parte da vida.
Junte os ritmos cada vez mais velozes e insanos da vida diária a esta forte
tradição que tem a medicina de “encaixar um sintoma”, prescrever um remédio
e mandar para o hospital que vamos todos viver dopados. Qual é a definição
precisa de transtorno mental? Quem pagará pela tragédia que o diagnóstico
errado causa na vida das pessoas?

Qualquer coisa malfeita afeta todos. Mas quando é feita na rua aos olhos de
todos como se fosse uma acusação, seja pelos despossuídos que usam crack,
seja pelas autoridades que usam o arbítrio para fazer a cidade limpa, há aí
outra vertente impiedosa dessa epidemia da tutela. Aqui o erro vem na sua
forma prática como serviço, depósito de exilados. No mesmo embrulho mistura
arbítrio e falsa legalidade e dá o nome de tratamento para o que é abandono.
Chama de falha moral a ousadia de esses jovens se desintegrarem nas ruas e
praças. O usuário de crack compartilha a única localização no espaço urbano
onde o efeito do que ele faz não é insignificante para os outros. Gerador de
atenção e afeição momentânea não consegue transformar em sonhos o que está
vivendo. Se o judiciário diz que é legal passeata para defender o que é
considerado ilegal, de onde sai a ousadia da autoridade para recolher das
ruas e retirar direitos de jovens pobres e abandonados? Onde pretende
devolvê-los?


Dar o nome de terapia à indiferença social e ao fracasso da política pública
— que não tem força para destinar recursos para serviços abertos 24h,
descentralizados e multiprofissionais de acolhimento — só confirma a força
que a indústria médica da tutela continua a ter sobre a população.
O que só aumenta a tragédia que é ver o sofrimento não gerar mais afeição.


Paulo Delgado - é sociólogo, foi deputado federal pelo PT de Minas e autor
da Lei da Reforma Psiquiátrica.

E-mail: contato@paulodelgado.com.br - O Globo – 05/12/2011

***
Texto recebido da Dra. Dirce de Assis RudgeIlustração: AlieneImagens:
Internet

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Adê Cardoso
HumanizaSUS Manaus
Gerência de Educação na Saúde - GESAU
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Fone/Fax: +55 (92) 3236-8987
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